quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A espiritualidade da vergonha

Na sociedade moderna, a tolerância transformou-se na maior de todas as virtudes. Aceita-se tudo, não se critica nada. O que mais me preocupa não é a capacidade de compaixão e paciência que a tolerância produz em nós, mas a ausência, cada vez maior, de valores e princípios absolutos que nos ajudam a separar o justo do injusto, o certo do errado.
O sociólogo francês Gilles Lipovetsky, em seu livro “A Sociedade Pós-Moralista”, descreve assim a tolerância na cultura moderna: “A tolerância adquire uma maior fundamentação social não tanto pelo fortalecimento da compreensão dos deveres de cada um perante o próximo, mas em razão de uma nova dimensão cultural que rejeita os grandes projetos coletivos, exaurindo de sentido o moralismo autoritário, diluindo o conteúdo das discussões ideológicas, políticas e religiosas de toda a conotação de valor absoluto, orientando cada vez mais os indivíduos rumo à sua própria meta de realização pessoal”. Ou seja, a ausência de uma consciência coletiva, a rejeição a qualquer verdade que seja absoluta e a busca pela realização pessoal geram uma forma perigosa de tolerância.
Entretanto, o perigo da rejeição a uma verdade absoluta está no fato de que ser tolerante hoje implica, necessariamente, não julgar, não ter mais critérios que separem o bem do mal, o justo do injusto; e, uma vez que não julgamos mais, poucas coisas nos chocam ou abalam e, quando o fazem, é por pouco tempo. Vivemos um estado de normalidade caótica, de paz frágil, de tranqüilidade tão relativa quanto os nossos valores.
Na oração de confissão de Daniel há uma declaração que vem se tornando cada dia mais rara entre nós: “A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós, o corar de vergonha” (Dn 9.7). Isto não acontece mais. Somos demasiadamente tolerantes para “corar de vergonha”. Mesmo diante de fatos trágicos e deploráveis que vemos todos os dias, o máximo que conseguimos é uma indignação passageira. Porém, é a possibilidade de corar de vergonha que não me permite rir da corrupção, achar normal a promiscuidade, conviver naturalmente com a maldade e a mentira, ou, ainda, achar graça da injustiça.
Vivemos numa cultura que se orgulha do pecado, glamourizando-o através dos meios de comunicação, fazendo das tribunas públicas um palco de mentiras, organizando marchas para celebrá-lo, rindo da corrupção, exaltando a esperteza. E ninguém fica corado de vergonha.
Daniel contrasta, de um lado, a natureza justa de Deus e, de outro, a corrupção e a injustiça do seu povo. Ele só é capaz de fazer isto porque sua ética e moral estão ancoradas em verdades absolutas sobre as quais não pode haver tolerância. A conclusão a que ele chega é que, diante da justiça divina e do quadro trágico de um povo que se orgulha de sua maldade, o que sobra é o “corar de vergonha”.
Ele nos apresenta aqui a importância de uma vergonha saudável e essencial na preservação da dignidade humana e espiritualidade cristã. A vergonha aqui é a virtude que nos ajuda a reconhecer nossos erros, limitações, faltas e pecados porque ainda somos capazes de perceber que existe algo melhor, mais belo, mais sublime, mais nobre, mais justo, mais santo e mais humano pelo qual vale a pena lutar. A vergonha nos impõe um limite. É por isto que o caminho para o crescimento e amadurecimento passa pela capacidade de ficar corado de vergonha diante de tudo aquilo que compromete a justiça e a santidade. No caminho da santidade lidamos com o amor, verdade, bondade, justiça, beleza, entrega, doação e cuidado. A falta de vergonha nos leva a negar este caminho e optar pela mentira, manipulação, engano, falsidade, hipocrisia e violência.
“Corar de vergonha” é uma virtude que falta na experiência espiritual moderna, a virtude de olhar para o pecado que habita em nós, a mentira e o engano que residem nos porões da alma, a injustiça que se alimenta do egoísmo, a malícia que desperta os desejos mais mesquinhos, e se entristecer. Precisamos reconhecer que foram os nossos pecados que levaram o Santo Filho de Deus a sofrer a vergonha da cruz. Quando olhamos para a cruz e contemplamos nela a beleza e a pureza do amor, só nos resta “corar de vergonha”.

Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.


Fonte: 
Site dos Batistas do Norte do Paraná





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