Na
sociedade moderna, a tolerância transformou-se na maior de todas as virtudes.
Aceita-se tudo, não se critica nada. O que mais me preocupa não é a capacidade
de compaixão e paciência que a tolerância produz em nós, mas a ausência, cada
vez maior, de valores e princípios absolutos que nos ajudam a separar o justo
do injusto, o certo do errado.
O sociólogo francês Gilles Lipovetsky, em seu
livro “A Sociedade Pós-Moralista”, descreve assim a tolerância na cultura
moderna: “A tolerância adquire uma maior fundamentação social não tanto pelo
fortalecimento da compreensão dos deveres de cada um perante o próximo, mas em
razão de uma nova dimensão cultural que rejeita os grandes projetos coletivos,
exaurindo de sentido o moralismo autoritário, diluindo o conteúdo das
discussões ideológicas, políticas e religiosas de toda a conotação de valor
absoluto, orientando cada vez mais os indivíduos rumo à sua própria meta de
realização pessoal”. Ou seja, a ausência de uma consciência coletiva, a
rejeição a qualquer verdade que seja absoluta e a busca pela realização pessoal
geram uma forma perigosa de tolerância.
Entretanto,
o perigo da rejeição a uma verdade absoluta está no fato de que ser tolerante
hoje implica, necessariamente, não julgar, não ter mais critérios que separem o
bem do mal, o justo do injusto; e, uma vez que não julgamos mais, poucas coisas
nos chocam ou abalam e, quando o fazem, é por pouco tempo. Vivemos um estado de
normalidade caótica, de paz frágil, de tranqüilidade tão relativa quanto os
nossos valores.
Na
oração de confissão de Daniel há uma declaração que vem se tornando cada dia
mais rara entre nós: “A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós, o corar de
vergonha” (Dn 9.7). Isto não acontece mais. Somos demasiadamente tolerantes
para “corar de vergonha”. Mesmo diante de fatos trágicos e deploráveis que
vemos todos os dias, o máximo que conseguimos é uma indignação passageira.
Porém, é a possibilidade de corar de vergonha que não me permite rir da
corrupção, achar normal a promiscuidade, conviver naturalmente com a maldade e
a mentira, ou, ainda, achar graça da injustiça.
Vivemos numa cultura que se orgulha do pecado,
glamourizando-o através dos meios de comunicação, fazendo das tribunas públicas
um palco de mentiras, organizando marchas para celebrá-lo, rindo da corrupção,
exaltando a esperteza. E ninguém fica corado de vergonha.
Daniel contrasta, de um lado, a natureza justa
de Deus e, de outro, a corrupção e a injustiça do seu povo. Ele só é capaz de
fazer isto porque sua ética e moral estão ancoradas em verdades absolutas sobre
as quais não pode haver tolerância. A conclusão a que ele chega é que, diante
da justiça divina e do quadro trágico de um povo que se orgulha de sua maldade,
o que sobra é o “corar de vergonha”.
Ele nos apresenta aqui a importância de uma
vergonha saudável e essencial na preservação da dignidade humana e
espiritualidade cristã. A vergonha aqui é a virtude que nos ajuda a reconhecer
nossos erros, limitações, faltas e pecados porque ainda somos capazes de
perceber que existe algo melhor, mais belo, mais sublime, mais nobre, mais
justo, mais santo e mais humano pelo qual vale a pena lutar. A vergonha nos
impõe um limite. É por isto que o caminho para o crescimento e amadurecimento
passa pela capacidade de ficar corado de vergonha diante de tudo aquilo que
compromete a justiça e a santidade. No caminho da santidade lidamos com o amor,
verdade, bondade, justiça, beleza, entrega, doação e cuidado. A falta de
vergonha nos leva a negar este caminho e optar pela mentira, manipulação,
engano, falsidade, hipocrisia e violência.
“Corar de vergonha” é uma virtude que falta na
experiência espiritual moderna, a virtude de olhar para o pecado que habita em
nós, a mentira e o engano que residem nos porões da alma, a injustiça que se
alimenta do egoísmo, a malícia que desperta os desejos mais mesquinhos, e se
entristecer. Precisamos reconhecer que foram os nossos pecados que levaram o
Santo Filho de Deus a sofrer a vergonha da cruz. Quando olhamos para a cruz e
contemplamos nela a beleza e a pureza do amor, só nos resta “corar de vergonha”.
Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja
Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em
Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.
Fonte:
Site
dos Batistas do Norte do Paraná
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